domingo, 10 de junho de 2012

Ela tem muita dúvida como todos têm. Mas nem todos sabem a beleza de saber lidar com a tristeza. Ela sabe. Ela ouve a música que seu coração pede e modela seu ritmo ao seu estado de espírito. Ela dança a coreografia de seus sentimentos, e todos podem ver. (…) Ela é mais que um sorriso tímido de canto de boca, dos que você sabe que ela soube o que você quis dizer. Ela fala com o coração e sabe que o amor, não é qualquer um que consegue ter. Ela é a sensibilidade de alguém que não entende o que veio fazer nessa vida, mas vive.

 Caio Fernando Abreu

terça-feira, 5 de outubro de 2010

SOU-TE


(1)
Sou-te!
Sou a tua imagem e semelhança.
Sou tu, tu sou eu, somos uno.
És eu!
Me vês em cada canto em que possas te refletir, me refletir.
Nos espelhos, nos lagos, nos vidros que refletem.
Conheço-te, conhece-me desde a mais tenra infância.
Onde tu com olhinhos espichados procuravas os meus.
Tu me adoras, te adoras, te adoro.
Sou-te inteira, sou-te rosto, sou-te olhos.
Mesmo quebrada tu me vês inteira.
Fragmentos de ti em mim.
Sou-te a pele branca de areia deserta, teu corpo magro, teus seios pequenos.
Sou toda encanto.
Tu és um encanto.
Sou-te olhos tristes.
Sou teu refúgio, me procuras e me encontras.
Não consegues esconder de mim teus segredos, teus sonhos, teus emaranhados de pensamentos, pois tu me olhas, olho-te e me vejo em ti sem seres tu.
Apenas imagem.
Vi-te, e vi-me através dos anos transformar-te, transformastes a mim.
Vi-me, vi-te alegre ou triste.
Cantaste-me canções, dançaste em mim.
Ensaiaste beijos e bocas, e ensinei a ti teu melhor ângulo.
Cresceste, cresci, muita coisa mudou.
Fizeste-me promessas e muitas não cumpriu.
Mas não te julgo, não me julgas.
Adultou-se, adulterou-se, humanizou-se.
Humanizou-se no sentido vil da palavra.
Tornou-se igual.
Perdeste a pureza que havia em mim, em ti.
Mas ainda és tu, sou eu...
Não perdeste o encanto.

(2)
Sou-te!
Serei-te sempre enquanto houver reflexos.
Queria poder abraçar-te
A ti que sou eu.
Fazer o que tu fazes, seres tu.
Mas conformo-me em ser-te sombra
Em ouvir tuas histórias.
Encanto-me com tua gargalhada, com teu pranto.
Os anos se passam e envelhecemos.
Vejo-te engolir em seco
Olhando as rugas que surgem.
Me tocas, te tocas, não acreditas.

(3)
Há dias não te vejo, não me vês.
Procuro-te a mim nos lagos, nos vidros de carro, no espelho de tua bolsa.
Não te encontro.
Miraculosamente consigo sair de meu canto e te encontro
Enquanto lavas o rosto em um pequeno lavatório de ágata.
Não me fitas.
Por toda a casa não existem mais objetos que refletem imagens.
Por isso não te encontravas, não me encontravas.
Aproximo-te de ti devagar.
Teus olhos agora fechados.
Sentes minha presença e me olhas, te olhas.
Choras ao se ver, ao me ver.
Abraço-te, abraça-me.
Abraço-me a ti e tu a mim.
De repente não me sou mais.
Deixaste de ser, deixei de ser.
Não somos mais.
Os espelhos perderam tua imagem.
Tu me perdeste.
Te perdi .
Não mais haverá outra igual a ti, a mim.

Natasha Romanova

terça-feira, 13 de abril de 2010

O jogo da amarelinha


Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.
Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.
Julio Cortázar.

Enjoy the silence

E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco um para o outro, senta ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente olhada com amor. Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu. Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras.

Ana Jácomo

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

"a vida sem a música seria um erro"
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Nietzsche.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

LUA DOURADA

"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, é então que me interrogo sobre quem tu és, Nossa Senhora do Silêncio... Figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, de interiores antigos, de cerimoniais faustosos de silêncio. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e de desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu. Talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil nunca é o mesmo mas nada muda. Eu digo isso porque eu sei, ainda que não saiba o que sei. Tu não és mulher, nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti, é quando as palavras te chamam fêmea e as expressões te contornam de mulher que eu tenho de te falar com ternura e amoroso. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não penso nem sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir e os meus sentimentos góticos de evocar-te. Ah Nossa Senhora do Silêncio! Ó Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem do vazio da minha imperfeição. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua. "


Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'
"Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti. E desse modo imobilizarei a tua alma também.Tu já não me amas. Se consentes em ouvir-me durante uma hora é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar. Ligaste-me e agora desligas-me. Não te censuro, Gherardo. O amor de alguém é sempre um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela ....... só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos."

Marguerite Yourcenar, in 'O TEMPO – esse grande escultor'